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20 de Abril de 2024
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    O acesso à saúde de crianças e adolescentes como direito fundamental.

    há 12 anos

    Mauro Campello *

    No dia 31.05.2012, crianças e adolescentes de Roraima tiveram seu direito ao acesso à saúde garantido pela Turma Cível do Tribunal de Justiça daquele Estado, quando do reexame necessário de decisão proferida pela Justiça Infanto-juvenil da Capital, que condenou o Município de Boa Vista a realizar a manutenção e reforma do Hospital da Criança Santo Antônio, em ação civil pública proposta pela promotoria de defesa da saúde, em virtude das inúmeras irregularidades detectadas pelos órgãos de fiscalização.

    Trata-se de uma decisão inédita, por conseguinte, histórica, que ousou inovar no campo do novo Direito da Criança e do Adolescente em Roraima como também entusiasma seus defensores a continuarem lutando por sua total efetivação. O entendimento firmado pela Corte de Justiça neste caso comprova que o Estatuto da Criança e do Adolescente é um forte instrumento civilizatório e garantista.

    A Lei Maior do país ao reconhecer que a saúde é direito de todos e dever do Poder Público, garantido mediante políticas sociais e econômicas, o acesso universal e igualitário às ações e serviços, orientou os entes federados a distribuição de recursos, a ampliação dos serviços existentes e o aprimoramento do atendimento.

    Todavia, como bem assinala Tânia Pereira da Silva, minha particular amiga, o acesso aos serviços de saúde, configurado como dever do Estado, diante das desigualdades de qualidade de vida nas diferentes regiões do país, não tem sido o principal objetivo das políticas públicas deste setor. Dados do IBGE apontam que a Região Norte é a que apresenta a menor parcela de profissionais capacitados trabalhando nos estabelecimentos de saúde, apenas 5%. Até 2010, o Brasil possuía 431.996 leitos, sendo que apenas 4,6% se concentravam no Norte do país.

    A situação se agrava ainda mais quando a pesquisa se direciona a saúde infanto-juvenil. Roraima, por exemplo, tem apenas um hospital pediátrico o Hospital da Criança Santo Antônio, situado na capital, que possui 86 leitos, para garantir o acesso à saúde de 163.286 crianças e adolescentes, distribuídos em 15 municípios, sendo que desse total, 22.696 vivem na área rural, enquanto 140.590, na urbana. Os jornais locais, diariamente, apresentam o raio-x sobre a precariedade do atendimento à saúde da população roraimense, especialmente dos seus jovens.

    No ensaio O descaso nas políticas de prevenção da área infanto-juvenil, publicado nesta coluna em 05.03.2012, afirmei que com o advento do ECA em 1990, fruto do esforço conjunto de milhares de pessoas e de entidades ligadas à defesa e promoção dos direitos das crianças, houve um avanço extraordinário no campo legal, colocando o país na vanguarda de legislações a respeito da matéria.

    A nova lei assegurou para todas as crianças e adolescentes, independentemente de sexo, credo, etnia, cor, situação econômica e de posição política, direitos fundamentais como à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à convivência familiar e comunitária, à dignidade, ao respeito e à liberdade, além de colocá-los a salvo de qualquer exploração, abuso, negligência e violência.

    Uma nova moral foi estabelecida pela sociedade brasileira a partir de 1990, consistente no direito das crianças serem protegidas, de sobreviverem e de se desenvolverem. Sob o aspecto formal, o ordenamento jurídico brasileiro reconheceu nossos jovens como sujeitos de direitos. Por isto, considero o ECA uma lei civilizatória.

    Contudo, o Estatuto não só quebrou o paradigma do menor objeto como se preocupou em efetivar seus direitos fundamentais. Quando estes direitos são ameaçados ou lesionados, o ECA prevê uma série de instrumentos capazes de restaurar a ordem jurídica ameaçada ou violada. Transforma realmente os jovens em verdadeiros cidadãos. A lei deixa de ser apenas uma representação simbólica. Assim, o Estatuto da Criança e do Adolescente ao proteger e defender os direitos humanos específicos destes novos cidadãos passa a ser visto também como uma lei garantista.

    Dessa forma, para melhor compreensão do importante julgado do Tribunal de Justiça que irei abordar, faz-se imprescindível conhecer alguns detalhes na tramitação da ação civil pública proposta pelo Ministério Público em face do Município de Boa Vista/RR, que tramitou, primeiramente, na vara da infância e da juventude da Capital, visando que a Prefeitura fosse obrigada a proceder à manutenção e reforma do Hospital Municipal da Criança Santo Antônio.

    O órgão ministerial instruiu sua petição inicial com laudos técnicos da Vigilância Sanitária e do Corpo de Bombeiros Militar, onde, após inspeções e diligências, apontaram que o Hospital Municipal da Criança Santo Antônio apresentava equipamentos mal calibrados/ajustados, móveis danificados e/ou com ferrugem, deficiência no serviço de limpeza e coleta do material a ser descartado, falta de espaço adequado, com elevado número de pacientes recebendo medicação nos corredores do hospital, dentre outros descasos.

    Antes de judicializar seu pedido, o órgão ministerial encaminhou às autoridades municipais as reclamações de pais sobre irregularidades na unidade hospitalar, bem como as diligências feitas, pareceres e relatórios de inspeções, sendo certo que aquelas se quedaram inertes.

    Na ação civil pública, o juízo da infância e da juventude deferiu a tutela antecipada, para obrigar o Município de Boa Vista/RR a proceder no prazo de 12 (doze) dias com a recuperação e manutenção do Hospital da Criança Santo Antônio, e, consequentemente, fossem atendidas todas as recomendações elaboradas nos relatórios da Vigilância Sanitária e do Corpo de Bombeiros, garantindo que os serviços pudessem ser seguros, adequados e eficientes.

    Para assegurar o cumprimento da decisão, a Justiça Infanto-juvenil fixou multa diária no valor de R$

    (cinco mil reais) a favor do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, para o caso de seu descumprimento.

    Inconformado com a decisão que antecipou a tutela, o Poder Público municipal agravou desta, tendo sido a mesma mantida pela colenda Turma Cível da Corte de Justiça de Roraima. Sustentou a Procuradoria do Município a impossibilidade de antecipação de tutela em desfavor da Fazenda Pública. Entretanto, nos tribunais superiores já se firmou o entendimento de que é admissível a antecipação da tutela em desfavor da Fazenda Pública, desde que efetivamente demonstrados os requisitos que ensejam sua concessão, como a relevância do fundamento da demanda e a existência de justificado receio de ineficácia do provimento final.In casu, a matéria tratada diz respeito ao acesso à saúde de crianças e adolescentes, logo, de relevância máxima e, sendo estes considerados sujeitos de direito e credores de especial proteção, restou devidamente comprovada à presença dos requisitos autorizadores da concessão da tutela antecipada. A prova pericial era forte no sentido da precariedade do atendimento prestado no Hospital Municipal da Criança Santo Antônio.

    Devidamente citado, o Município de Boa Vista/RR contestou a peça vestibular arguindo exceção de incompetência da Justiça da Infância e da Juventude para conhecer e julgar tal conflito, por entender ser competente uma das Varas de Fazenda Pública da Comarca da Capital. No mérito, requereu a improcedência da pretensão ministerial, sob a alegação de escassez de recursos, tese também conhecida como reserva do possível, e violação ao princípio da separação dos poderes.

    Instruído o feito e tendo as partes apresentado suas últimas alegações, sobreveio à sentença que condenou o Município de Boa Vista/RR na obrigação de proceder à recuperação e à manutenção do Hospital da Criança Santo Antônio, confirmando integralmente a antecipação de tutela.

    A Procuradoria do Município apelou desta sentença, entretanto, seu recurso não foi conhecido por ter sido considerado intempestivo. Os autos da ação civil pública foram remetidos ao Tribunal de Justiça, nos termos do art. 475, I do Código de Processo Civil, para o reexame necessário da decisão final da Justiça Infanto-juvenil, tendo o Ministério Público de 2º Grau opinado pela confirmação da sentença que condenou o Município.

    Na sessão do dia 31.05.2012, após ampla discussão, a Turma Cível entendeu, inicialmente, pela incidência do art. 148, IV do ECA, e reconheceu a competência da vara da infância e da juventude da capital para conhecer e julgar a ação civil pública em questão e, em seguida, afastou a alegação de escassez de recursos e de violação ao princípio da separação dos poderes. Firmou a posição, salvo raras exceções, que as teses da reserva do possível e a da reserva de competência orçamentária do legislador não podem ser invocadas como óbices ao reconhecimento e à efetivação de direitos sociais diretamente ligados à vida e à integridade física da pessoa, especialmente quando se tratar do novo Direito da Criança e do Adolescente.

    Por último, consagrou na Turma Cível o entendimento de que não há ofensa ao princípio da separação dos poderes, uma vez que a eficácia plena e imediata dos direitos fundamentais implica no dever que tem o Poder Legislativo em atuar para criar mecanismos de relações humanas que os concretizem, o Poder Executivo em implementar políticas públicas voltadas à realizá-los e ao Poder Judiciário, em assegurar a aplicação destes direitos.

    Deve haver uma interação constante entre os três Poderes, a fim de se assegurar a eficácia dos direitos humanos básicos de crianças e adolescentes e, assim, evitar que estes figurem indefinidamente no rol das garantias programáticas.

    Concluo que a efetividade dos direitos sociais não pode depender da viabilidade orçamentária e deve ser garantida pelo Poder Judiciário. Entendimento contrário geraria total frustração das legítimas expectativas da sociedade e provocaria a desconstrução do Estado Democrático de Direito.

    * Professor de Direito da Criança e do Adolescente da UFRR; - Desembargador do Tribunal de Justiça de Roraima; - Diretor da Escola Judiciária de Roraima; - Acadêmico do 4º ano do Curso Bacharelado/Licenciatura em História pela UFRR - O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. Tweet

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